Crítica

[Crítica – Mostra SP 2015] Fome

Na composição de Missas, em música clássica, a parte lacrimosa pede perdão ao Senhor para o homem julgado. A lacrimosa de Mozart, utilizada no filme Fome, é especialmente bonita. Sugere que aquele mendigo, um homem digno de nossa compaixão pela justaposição da música, afligido por inúmeros sofrimentos merece a misericórdia divina.




A cena parece bela no papel. O mendigo, interpretado com muita competência por Jean-Claude Bernardet, vagueia por algum descampado perto do Largo do Batata, enquanto a música enche a sala de cinema. Não fica claro o que ele quer, o que busca, o que faz. Não procurava um canto para dormir, não buscava o que comer; antes, parecia consciente de sua performance, consciente da música, e esse – como diversos outros momentos do filme – me pareceu apenas mão pesada da direção.

Há muito de autoindulgência no filme Fome. Nos primeiros quase quinze minutos acompanhamos a figura central do filme, o mendigo Malbou, em sua rotina: lavando o rosto num espelho d’água na Sé, puxando seu carrinho – tudo filmado em preto e branco. A questão é que, mesmo quando parece buscar o oposto, o filme acaba por romantizar a pobreza e a questão do mendigo.

Tudo fica um pouco mais interessante com a presença da universitária recifense que realiza um trabalho de pesquisa acerca dos mendigos de São Paulo. Quando ela conversa com Malbou, dá para perceber que seu foco é apenas sugar do personagem, roubar-lhe algo que pareça interessante porque ela olha para o relógio enquanto conversa com ele. Em seguida, já não fica muito claro se a estudante tem um interesse legítimo pelo seu objeto de pesquisa. O filme sugere que sim e que não ao mesmo tempo – o que caracteriza o problema principal: enquanto tenta causar alguma reflexão a respeito da vida dos mendigos acaba por resvalar nos argumentos de sempre de culpa burguesa e artifícios de romantização da pobreza.




Uma cena em particular é especialmente incômoda – porque inconsistente. Um casal, saindo de um restaurante, decide deixar um embrulho de comida para Malbou. Esse casal é mostrado grosseiramente como uma caricatura de alguma elite paulistana abstrata. O homem chuta o mendigo para avisar que está deixando comida. Tudo é maniqueísta na cena. Segue-se uma discussão onde o mendigo preserva sua dignidade e o outro é exposto pelas lentes como o idiota que é.

Sobra pouco espaço para ambiguidade na vida desse mendigo em questão. Fome é um ensaio pretensiosamente melancólico da rotina de um morador de rua que não é (a obra parece sugerir) o que você, de mente fechada, imagina; ele pode estar ali por escolha própria, ele pode ter sido um professor universitário e pode ser muito inteligente. Busca-se desconstruir um preconceito do espectador que não parece estar nele, mas no filme.

Cenas de Malbou dançando com música de fundo, sugerindo que ele vive enquanto a sociedade morre, beira a demagogia pura. A obra é fechada com uma sequência muito, absurdamente longa dele carregando o seu carrinho num túnel (contra os carros que passam velozes – sutil…) e chorando e chorando. A empatia deve vir de onde exatamente? Do fato de ele ser um mendigo, da solidão que deve sentir, da luta diária em tentar preservar sua humanidade? Não está claro. Ao menos não há música grandiloquente para dizer que você tem que sentir alguma coisa.

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