Crítica

[Crítica] Estranho Caminho (2023)

O drama fantástico de Guto Parente, Estranho Caminho, conta a história do cineasta cearense David (Lucas Limeira), que mora em Lisboa, Portugal, e retorna ao Brasil durante o início da pandemia do Covid-19 para estrear seu filme em um festival local. A quarentena começa dias antes do festival, que é adiado, e David se vê obrigado a se reconectar com o seu pai Geraldo (Carlos Francisco), de quem ele se distanciou quando se mudou do país. O filme foi exibido e premiado no Festival de Tribeca de 2023.

O pano de fundo da pandemia serve para adicionar instabilidade, incerteza e caos à trama, que é recheada de dilemas existenciais do protagonista. Enquanto tenta se reconectar com seu pai, David vivencia eventos estranhos e sua percepção da realidade é questionada. O que é realidade? O que é ficção? O longa mistura realismo e fantasia, mistério e crueza, com toques experimentais e momentos reflexivos e profundos.

Estranho Caminho (2023)

A relação entre David e Geraldo é o ponto central do filme, assim como os dilemas pessoais e jeito de cada um deles. Geraldo se mostra um homem enigmático, recluso e muito resistente à ideia de se reaproximar do filho. O distanciamento social era comum durante a pandemia, mas a distância emocional e física entre pai e filho vai muito além e é muito mais intensa que isso.

Ao chegar em Fortaleza, David se mostra contrário à ideia de ir visitar o seu pai. Com o decreto do lockdown e após perder sua hospedagem em um hostel, ele se vê obrigado a ir pedir abrigo ao pai. O rapaz é recebido de forma pouco calorosa e encontra resistência no pai muito pouco amistoso. Vemos de perto e com detalhes como aquela relação parece não dar liga em cenas desconfortáveis e reais. No apartamento, pai e filho tentam conviver mas parecem ser incompatíveis. É uma relação cheia de rispidez e frustração. Há uma tensão ali desde o primeiro momento, até mesmo antes do pai aparecer pela primeira vez no filme.

Estranho Caminho (2023)

Estranho Caminho é um filme linear e que, ainda que tenha diversas metáforas, se preocupa em explicá-las ao público, tentando não deixar nenhuma pergunta sem resposta, com um roteiro bem amarrado. À medida em que a história progride, elementos fantásticos são introduzidos ao longa. A tentativa de reaproximação de filho e pai é mostrada de forma sensível e muito bem ancorada pela atuação dos dois atores. Enquanto Lucas Limeira consegue interpretar um David fechado e sensível, que transita entre sentimentos conflitantes pelo pai, Carlos Francisco mostra toda a complexidade e dualidade de Geraldo. Apesar de Geraldo ser muito não-comunicativo, o ator consegue transmitir várias camadas dele a cada cena em que aparece.

O filme tem um bom ritmo; acompanhamos a história com uma bela fotografia e vamos juntando as peças e entendendo mais sobre aquela difícil relação familiar, ainda que com algumas conveniências de roteiro e alguns diálogos um pouco deslocados. Mais ao final, no terceiro ato, o plot twist do roteiro faz toda a percepção de David – e também a nossa – ser colocada de cabeça para baixo e passamos a ver tudo com um novo olhar. A fantasia está sempre ali à espreita, inclusive quando vemos trechos do filme experimental de David, e no terceiro ato ela fica mais evidente, mas nunca de forma previsível.

Estranho Caminho (2023)

O longa cearense é um filme criativo e pessoal (o diretor o dedicou ao seu pai), ao mesmo tempo em que traz um tema universal, com momentos oníricos e surreais que dão mais profundidade à história e auxiliam à chegar na bonita mensagem final. Há um clima de devastação que acontece tanto pela pandemia e toda a incerteza e ansiedade que ela trouxe às nossas vidas, como também por aquela relação familiar tão falha e agridoce. O estranhamento entre os dois personagens é sempre palpável.

Estranho Caminho acerta como um filme que tem o formato realista do cinema nacional, mas também traz um tom metafórico, aberto e experimental. O longa tem um quê de cinema surrealista, sem perder as características comuns da maioria dos filmes nacionais. O filme consegue dosar muito bem o seu realismo desconfortante com a fantasia e subjetividade, momentos tensos e aterrorizantes com momentos ternos e emotivos, tudo isso sempre com um bom senso de humor, mas também momentos de dar nó na garganta. Estranho Caminho é um filme cativante, sensorial e delicado, com um olhar poético e gentil sobre fazer as pazes com o passado, paternidade e luto. Uma ótima surpresa.

“Que estranho caminho que eu percorri pra chegar até ti… sempre quis usar essa frase em um filme. Te amo, pai!”