[Crítica – Mostra SP 2025] Irmão Versos Irmão (2025)
As relações familiares são complicadas. Irmão Versos Irmão surge como um fascinante experimento cinematográfico — uma odisseia musical em São Francisco protagonizada por dois irmãos gêmeos da vida real interpretando versões de si mesmos.
Ari Gold e Ethan Gold — conhecidos como os Brothers Gold (o nome “Gold Brothers” já estava indisponível nas redes) — são músicos talentosos, com ironia afiada e uma relação marcada por provocações mútuas. Enquanto o pai deles está morrendo, os dois passam o dia caminhando pelas ruas, tocando em diferentes espaços e conversando sobre a vida, especialmente sobre a morte iminente do pai. Cada canção é uma forma de catarse, um espelho das tensões entre eles — principalmente das críticas de Ethan a Ari, expressas em versos sobre o fardo de ter o irmão sempre por perto.
O filme se apresenta, desde os primeiros minutos, como um exemplo de “cinema ao vivo”, conceito popularizado por Francis Ford Coppola — que, inclusive, assina a produção executiva. A improvisação guia toda a narrativa: os irmãos são realmente irmãos, o pai está de fato morrendo, e as cenas foram gravadas enquanto caminhavam e improvisavam. O design de produção é creditado oficialmente às próprias ruas de São Francisco, transformadas em cenário e personagem. É nelas que os Brothers Gold vagam, cantando e expondo, em tempo real, as fissuras e afeições de uma relação que oscila entre amor, cansaço e cumplicidade.
Os irmãos se encontram em um bar de São Francisco para uma apresentação, cada um com uma intenção diferente: Ari quer ajudar o irmão a conseguir um trabalho fixo como músico, seja ali ou em outro local próximo; já Ethan deseja cantar uma nova canção dedicada ao pai, Herbert (que aparece interpretando a si mesmo), esperado para assistir ao show.
Esse embate fraternal é o coração do filme — mas não chega a ser uma rivalidade real. Fica claro que existe afeto o suficiente para que eles criassem algo tão íntimo juntos. As alfinetadas são, no fundo, demonstrações de carinho disfarçadas de sarcasmo. Ari parece o mais instável dos dois, mas também o mais resignado; aceita o caos da própria vida com uma serenidade que Ethan não consegue fingir. Seja o quanto disso for verdade ou ficção, o resultado é um retrato magnético de uma dupla cuja conexão transborda a tela.
Embora não seja uma história de amor, há algo profundamente romântico na forma como esses irmãos se movem pela cidade, transformando cada esquina em palco e cada canção em despedida. Irmão Versos Irmão é um exemplo de “cinema ao vivo” que funciona: uma narrativa simples, mas conduzida com imaginação e emoção, celebrando ao mesmo tempo a música, a vida e a perda.
Com pouco mais de 90 minutos, Irmão Versos Irmão mantém ritmo e tensão com pequenos gestos — enquadramentos que acompanham o passo dos personagens, movimentos de câmera que simulam planos contínuos, e cortes sutis que criam a ilusão de fluidez teatral. As ruas de São Francisco funcionam como cenário vivo, caótico e imprevisível. Sabendo que o filme nasce de uma experiência poética real entre pai e filhos, o público oscila entre o documentário e a ficção: tudo parece simultaneamente ensaiado e autêntico, falso e verdadeiro. O que eles dizem pode não ser factual, mas soa absolutamente honesto.
Irmão Versos Irmão é, em essência, um filme sobre amor, perda e legado. Sobre dois irmãos tentando fazer o melhor um pelo outro enquanto buscam existir de forma independente, sobre dois filhos tentando honrar o que os pais lhes deixaram — um já ausente, outro que morreria pouco após as filmagens. É também um retrato sobre como a arte nos mantém vivos. Ao assistir, é quase impossível não pensar na própria família: nos pais que envelhecem, nos filhos que crescem, nas relações que se transformam. Durante 90 minutos, Ari e Ethan discutem, se reconciliam, se provocam.
À primeira vista, o longa parece um documentário excêntrico, com suas imperfeições visíveis — sombras aparecendo, transeuntes acenando para a câmera. Essas “costuras” lembram o público de que o que vemos é tanto representação quanto verdade. E, à medida que o filme avança, torna-se irrelevante distinguir uma da outra. O que importa são as ideias que ele articula: família, responsabilidade, amor e o desejo humano de conexão.
Embora o filme por vezes se alongue em caminhadas e conversas repetitivas — especialmente no trecho final, durante a subida da colina —, o feito técnico é inegável. A câmera transforma São Francisco em um terceiro personagem, viva e pulsante, com sua topografia funcionando como cenário e metáfora.
No fim, Irmão Versos Irmão se revela uma reflexão sensível sobre família, mortalidade e o poder curativo da arte. A jornada dos irmãos culmina em um desfecho emocionante e merecido, ainda que o formato experimental traga algumas imperfeições. Nem tudo funciona o tempo todo, mas a honestidade e a ambição do projeto fazem dele bastante memorável.
Irmão Versos Irmão faz parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro.