[Crítica – Mostra SP 2025] Kontinental ‘25 (2025)
Filmado em iPhone, Kontinental ’25 começa acompanhando Ion (Gabriel Spahiu), um homem sem dinheiro e em frágil estado mental, vagando pelas ruas turísticas de Cluj em busca de algum trocado ou trabalho eventual. Ex-atleta premiado, ele agora sobrevive num porão insalubre, parte de um prédio prestes a ser demolido para dar lugar a um hotel-boutique pertencente a uma rede alemã. O hotel-boutique é símbolo perfeito da desumanização travestida de progresso.
Atrasado no aluguel e sem alternativas, Ion enfrenta uma ordem de despejo. Quando os oficiais chegam — liderados por Orsolya (Eszter Tompa), ex-professora de Direito que agora trabalha como oficial de justiça —, o desespero o domina e ele tira a própria vida.

É nesse ponto que o filme realiza sua primeira grande ruptura: até então acompanhávamos aquele homem pelas ruas e o foco narrativo muda completamente, com o protagonismo passando para Orsolya. Ex-advogada, de visão liberal e personalidade empática, ela fica arrasada pela culpa após a morte de Ion. O choque leva a protagonista a se sentir culpada e em busca de validação em todos à sua volta. Ela pergunta, entre lágrimas, se tem culpa no ocorrido, e todos — amigos, colegas, conhecidos — respondem que não, confortando-a com empatia automática e vazia.
Orsolya, incapaz de seguir com a viagem de férias planejada com o marido e os filhos para a Grécia, vaga por Cluj em estado de torpor, buscando perdão — ou pelo menos compreensão — entre amigos, colegas e figuras de autoridade. Mas a cada encontro, o que se revela é um mosaico de cinismo e impotência moral: todos a tranquilizam com frases feitas, enquanto a protagonista percebe que a tragédia não é apenas sua, mas sintoma de uma estrutura social apodrecida.

Logo, Orsolya descobre que Ion era um ex-atleta olímpico romeno, o que complica tudo: sendo ela de origem húngara, passa a ser atacada pela imprensa nacionalista, acusada de “matar um patriota romeno”. Não é a primeira vez — já havia sido difamada online após despejar estudantes ativistas de uma ocupação. A obsessão com a culpa leva-a a atitudes impulsivas, quase autodestrutivas. “Sei que não tenho culpa legal, mas não me sinto bem”, diz a personagem algumas vezes ao longo do filme.
O novo filme de Radu Jude se apresenta como uma parábola universal sobre os custos humanos da gentrificação e do neoliberalismo, ambientada em uma Romênia pós-comunista que reflete dilemas globais.

Entre os momentos mais marcantes do longa, destacam-se a discussão explosiva entre Orsolya e a mãe, que termina em um debate feroz sobre fascismo e nacionalismo – a sua mãe elogia Viktor Orbán e, ao ouvir a filha chamá-lo de fascista, a expulsa de casa aos gritos -, o padre arrogante que oferece conselhos espirituais inúteis, e uma cena em que se discute as contradições da caridade moderna enquanto a música eletrônica de uma boate ameaça engolir as palavras — metáfora literal para o barulho ensurdecedor da vida contemporânea.

Sua amiga tenta criar empatia lembrando que também expulsou um sem-teto do prédio “porque ele cheirava mal”. Orsolya bebe com um ex-aluno que agora trabalha como entregador de aplicativo, exibindo nas costas uma placa com a frase “Sou romeno” — uma precaução para não ser atropelado por motoristas xenófobos que atacam trabalhadores imigrantes do Sri Lanka ou Bangladesh.

Visualmente, o diretor intercala o drama com montagens estáticas e silenciosas de ruas vazias, canteiros de obras e edifícios recém-construídos. Essas imagens, de beleza fria e quase geométrica, mostram um olhar distante e traduzem em arquitetura o sentimento de solidão urbana e deslocamento humano.
O resultado é um retrato brutal da indiferença contemporânea — um desfile de pessoas que, embora diferentes em classe e crença, compartilham a mesma incapacidade de se importar verdadeiramente com o sofrimento alheio. Kontinental ’25 é um filme sobre a anestesia moral de um país, e, por extensão, do mundo.

O filme termina com uma montagem corrosiva: imagens de habitações populares degradadas contrastam com os condomínios de luxo murados, separados por uma fronteira tão física quanto moral. O grande paradoxo que Jude expõe é simples e devastador: os sistemas de opressão dependem de milhões de pessoas que se sintam culpadas o suficiente para continuar se achando inocentes.

Kontinental ’25 é uma sátira impiedosa, vibrante e inquieta, oscilando entre o pessimismo e um vislumbre de esperança. O filme escancara como a apatia é o mal do nosso tempo e como o discurso da empatia se esvazia quando é utilizado para restaurar a dita normalidade. O mundo segue igual, apenas com a consciência um pouco mais limpa.

No fim, o filme é menos um drama sobre culpa individual do que uma autópsia moral de um sistema inteiro, onde as estruturas de poder produzem tragédias previsíveis e, em seguida, oferecem consolo pronto para neutralizá-las.
Kontinental ‘25 faz parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro. O filme foi o vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Berlim 2025

