Crítica

[Crítica] O Último Azul (2025)

Tive o privilégio de assistir a O Último Azul duas vezes antes de sua estreia oficial: primeiro em uma cabine de imprensa e, depois, na pré-estreia realizada no imponente e histórico Cinema São Luiz, em Recife, com a presença do diretor Gabriel Mascaro, da protagonista Denise Weinberg e de parte da equipe. Desde o primeiro contato, já havia me encantado com o longa, e na segunda sessão a obra revelou novas camadas e cresceu ainda mais diante dos meus olhos. Além disso, participei também da coletiva com Mascaro, Weinberg e a produtora do longa, momento que ampliou e aprofundou o entendimento dos símbolos, escolhas e sentidos que atravessam esse filme tão singular e bonito.

O Último Azul (2025)

Em O Último Azul, Gabriel Mascaro constrói uma distopia ambientada no Brasil, onde o Estado controla a vida dos idosos e os reduz a um papel quase invisível. Nesse cenário, acompanhamos Tereza, de 77 anos, que perde o emprego e, junto com ele, a possibilidade de decidir sua vida por si mesma. Determinada a não aceitar esse destino imposto, ela inicia uma jornada pelo coração da Amazônia em busca de recuperar o controle sobre sua própria existência.

O mais instigante é que, ao contrário do que ocorre em grande parte das narrativas distópicas, aqui a protagonista é uma mulher idosa. A escolha de Mascaro é deliberada e dialoga diretamente com o tipo de mundo que o filme retrata: um país onde os mais velhos são tratados como descartáveis, obrigados a viver à margem do progresso que o governo tanto exalta, mas do qual não podem participar.

O Último Azul (2025)

Nesse Brasil, envelhecer significa perder direitos. O que é antigo não tem espaço; deve ser evitado, silenciado. A experiência de Tereza ilustra esse processo: sem trabalho, sem autonomia, e até mesmo vista pela própria filha como um objeto. Esse olhar reduzido reforça a ideia de que a velhice é uma condição de limitação e não de vivência. Mas Tereza recusa esse papel passivo.

Carrega desejos que nunca realizou, projetos deixados de lado em nome de uma vida dedicada à família. Quando perde o emprego por atingir a idade-limite fixada pelo governo e recebe a ordem de transferência compulsória para uma dessas colônias isoladas, decide reagir. Em vez de se entregar, inicia uma fuga pela Amazônia, buscando o direito de escolher como viver seus últimos anos.

O Último Azul (2025)

Tereza traça planos para voar de avião, para fugir, para provar que ainda pode escolher. A narrativa, então, adota tons de aventura: cada tentativa, bem-sucedida ou não, transforma-se em um aprendizado. Como Mascaro explicou em coletiva, o filme passeia por gêneros, da distopia ao boat movie.

No caminho surgem aliados improváveis. Cadu (Rodrigo Santoro), um contrabandista que conhece bem as rotas amazônicas, Ludemir (Adanilo), um jogador azarado que sonha em colocar novamente no ar sua aeronave, e Roberta (Miriam Socarrás), comandante de uma embarcação evangélica, apesar de não ser religiosa. Eles oferecem recursos, saberes e novas perspectivas. Cada episódio e cada encontro amplia seu horizonte.

O Último Azul (2025)

Com eles, Tereza aprende a enxergar que a liberdade não está apenas em escapar do controle estatal, mas em reivindicar para si o simples ato de existir com dignidade, saboreando cada experiência. A imagem da protagonista, com os cabelos brancos soltos ao vento enquanto avança pelos rios, cristaliza essa busca por autonomia.

O desejo inicial da protagonista de voar se expande. Ela percebe que não se trata apenas de um passeio de avião, mas da chance de viver plenamente depois de anos contidos entre obrigações, rotina e imposições familiares. Esse despertar já estava sugerido em pequenas cenas, como a dança que ela improvisa no trabalho.

O Último Azul (2025)

O Último Azul se sustenta pelo tom de esperança que transmite, sem cair no sentimentalismo. Grande parte desse efeito vem da atuação de Denise Weinberg, que dá vida a Tereza com uma presença firme e sensível, capaz de despertar empatia imediata. A sua atuação é o centro gravitacional da obra. Sua Tereza é dura e frágil ao mesmo tempo, conduzindo o público por um trajeto físico, emocional e até místico.

O filme se revela como uma poesia em movimento: delicado, contemplativo, construído em belos enquadramentos. Mascaro ancora sua narrativa em simbologias potentes, como na parte inicial do filme, quando jacarés surgem sendo despejados por um escorregador industrial, conduzidos para o abate e o esfolamento, para depois, no desfecho, vermos um jacaré nadando livre pelas águas. Essa passagem não apenas fecha um ciclo, mas sintetiza o gesto do filme: a liberdade como contraponto ao confinamento, o corpo que resiste à captura para, enfim, reconquistar o direito de existir em plenitude.

O Último Azul (2025)

O filme mistura realismo social com toques de fantasia. Há o caramujo que secreta uma baba azul de efeito alucinógeno e há a bíblia eletrônica que nunca quebra que Roberta negocia em suas viagens. Também há detalhes cotidianos que sugerem a violência do sistema, como um muro pichado com a frase “Devolvam meu avô”.

Gabriel Mascaro entrega uma obra que diverte e comove, criando um universo onde até mesmo nos instantes mais sombrios permanece viva a possibilidade de seguir em frente, independentemente da idade. Longe de ser uma obra sombria, O Último Azul transborda vitalidade. Há poesia em cada detalhe, e o filme celebra a potência dos mais velhos como parte essencial da sociedade. Entre a ficção científica e a fábula, Mascaro apresenta uma visão distópica que, ao mesmo tempo, encontra esperança no futuro.

O Último Azul (2025)

Um dos aspectos mais belos de O Último Azul é a forma como Gabriel Mascaro filma os corpos idosos. Em vez de tratá-los com distanciamento, estigma ou caricatura, o diretor opta por uma abordagem sensível, que reconhece tanto a fragilidade quanto a vitalidade presentes na velhice. Tereza surge com seus cabelos naturalmente brancos, com corpo exposto em cena de massagem, em outras de maiô ou biquíni, em movimento constante, e nunca como objeto de ridicularização ou fragilidade excessiva.

O olhar da câmera não esconde rugas, marcas ou sinais do tempo; pelo contrário, os assume como parte da beleza e da presença dessa mulher. O resultado é um retrato sensível e honesto, que reconhece a potência dos corpos envelhecidos, devolvendo-lhes dignidade e centralidade, colocando uma idosa em situações ativas, desejantes e plenamente vivas.

Ver uma personagem de 77 anos, como Tereza, em cena de maneira ativa, em movimento, em fuga, desejando e sonhando, é raro e poderoso. O corpo idoso aqui não é apagado nem reduzido à ideia de decadência, inatividade e fim de vida, mas filmado com delicadeza, textura e presença, reafirmando que a idade também é território de potência e de liberdade.

O Último Azul (2025)

A opressão está sempre presente, mas nunca vence Tereza. Ela redescobre o prazer de existir e se recusa a ser reduzida a um peso econômico. O filme não precisa entregar conclusões óbvias: sua potência está no convite a enxergar a velhice como estado de humanidade plena. A obra mostra que melhor forma de enfrentar a frieza do mercado e a indiferença política é oferecer cuidado, empatia e espaço para os sonhos dos esquecidos.

O Último Azul mostra que o gesto de libertar-se pode acontecer em qualquer fase da vida. Entre imagens poéticas, críticas sociais e humor, Mascaro entrega um filme que, mesmo situado em um Brasil distópico, encontra cor, leveza e possibilidade no simples ato de seguir em frente. No fim, Tereza não precisa de um avião para sentir a liberdade de voar.