[Crítica] Emilia Pérez (2024)
É difícil saber por onde começar a falar sobre Emilia Pérez. Poucas vezes vi um filme em que praticamente todos os aspectos parecem fora de lugar e fora de tom. O filme de Jacques Audiard, que misteriosamente recebeu 13 indicações ao Oscar, conta a história de Manitas (Karla Sofía Gascón), chefe de cartel do México, que passa por uma cirurgia de afirmação de gênero para Emilia Pérez (Karla Sofía Gascón), com auxílio da advogada Rita (Zoe Saldaña).
Para sobreviver pós transição, ela finge que Juan “Manitas” Del Monte morreu e agora vive como Emilia, sem contato com ninguém que tinha antes. Anos depois, tenta se reconectar com sua ex-esposa Jessi, interpretada por Selena Gomez, que não sabe de nada do que aconteceu. Olhando assim, a história tem algum potencial e poderia sair algo de bom dessa sinopse. Não é o caso.

Eu amo musicais. Mas, enquanto assistia ao filme, constantemente me pegava pensando que deve ser por isso que tanta gente detesta o gênero, por exemplares desse tipo. Bons musicais usam suas músicas como muletas para a progressão da história. As músicas estão ali como auxílio para o andamento da história ou para aprofundar algum aspecto de um personagem, de um sentimento ou da história em si. Ou seja, as músicas têm um propósito de existir. Não é o que acontece com Emilia Pérez. A cada cena musical do filme, fica a sensação de que aquela música não precisava existir ali.
Como musical, o filme falha miseravelmente. As músicas não funcionam e são totalmente descartáveis. São músicas com antimelodias cantadas com vozes sussurradas na maior parte do tempo. A performance de Zoe Saldaña na música “El Mal” é um dos raros bons momentos do filme, por seu jogo de luz e sombra, mas, fora isso, as demais músicas são no mínimo constrangedoras. Nunca fica claro o motivo de Emilia Pérez ser um musical. Falando em performances, Saldaña entrega a mais competente do filme. Karla Sofía Gascón está bem, mas nada acima da média ou de se chamar atenção. Selena Gomez é um dos pontos fracos de atuação no filme. Apesar de gostar dela como atriz, especialmente na série Only Murders in the Building, a atuação dela aqui é constrangedora.

Não há consistência estrutural na musicalidade e as músicas são esquecíveis em Emilia Pérez, ignorando toda e qualquer profundidade de tema que poderia ser abordado. Mas a falta de profundidade não se aplica apenas às músicas. Os dilemas que poderiam ser enfrentados pela personagem-título, que assassinou e sequestrou centenas ou milhares de pessoas no México, é completamente ignorado. No filme, fica a sensação de que a motivação do traficante Manitas de passar pela transição é quase que exclusivamente o desejo de escapar de seu possível destino de quando era chefe de cartel.
A música que retrata o momento de transição de Emilia no centro cirúrgico de redesignação de gênero é… inacreditável, para dizer o mínimo. O roteiro de Audiard é simplório a ponto de que, toda que Emilia “retorna” aos seus “velhos hábitos” ou tem uma atitude mais agressiva, Karla Sofía Gascón abaixa o seu tom de voz, como se o filme quisesse associar a masculinidade ao mal e a feminilidade ao bem, de forma totalmente maniqueísta. É como se Emilia fosse duas metades, e não um ser complexo. Quando se transforma em Emilia, é absolvida de toda a culpa e chega a ser glorificada, santificada. O tema de redenção que o filme tenta abordar fica vazio, sem substância.

Depois de passar pela transição, Emilia manda a sua esposa Jessi e seus filhos para a Suíça, para evitar represálias de rivais. Mas, depois de um tempo, sente falta da família e pede para a advogada Rita trazê-los de volta ao México; ela se passa por uma irmã de Manitas que eles não conheciam. No mesmo momento que a advogada Rita encontra Emilia pós-transição, ela a reconhece. Inexplicavelmente, em nenhum momento a sua família tem qualquer ideia de quem ela é, ninguém suspeita, ninguém percebe.
A “transformação” mostrada pelo filme, de chefe do cartel para benfeitora que acaba como santa (e isso não é uma metáfora!!!), é inconsistente e sem explicação. O filme trata a afirmação de gênero como algo que gera uma mudança completa de 180 graus no caráter e personalidade da pessoa. É uma narrativa superficial e que escancara como não se importa com o assunto que tenta retratar.
É um filme lotado de estereótipos, xenofobia e transfobia. Pode parecer algo muito ousado e diferente para europeus e norte-americanos, mas é medíocre. O filme é uma representação patética sobre questões trans. Em uma das cenas, um dos filhos de Emilia observa que ela tem o mesmo cheiro de seu pai: mais um estereótipo trazido pelo filme, já que a mudança no odor corporal é um dos efeitos mais imediatos da terapia de reposição hormonal.

O filme tem roteiro e direção de Jacques Audiard, um homem cisgênero francês. Recentemente, o diretor afirmou que o espanhol é “uma língua de migrantes e pobres”. Ele não sabe inglês e não sabe espanhol (deve ser por isso que muitos diálogos soam tão estranhos, como se traduzidos de qualquer forma e sem cuidado), acredita que não precisava fazer uma pesquisa aprofundada para o filme, pois “já sabia o suficiente sobre o México”. Ele mora na França e filmou o filme em um estúdio na França, majoritariamente com atrizes não-mexicanas. Todas essas afirmativas ficam ainda mais complicadas quando são sobre um filme que se orgulha de sua suposta representatividade. O diretor e roteirista ter feito pouca ou nenhuma pesquisa sobre um tema tão delicado como vidas trans e cartéis mexicanos fica evidente a cada cena.
Por se tratar de uma história de redenção de um narcotraficante, é esperado que o filme seja feito com toda delicadeza possível, para que não acabe sendo ofensivo. Emilia Pérez é questionável em sua representatividade (que, a exceção de Karla Sofía Gascón, que é uma pessoa trans – mas espanhola) inexistente, mas também em nível narrativo. A quantidade de indicações que o filme recebeu no Oscar – e nas demais premiações – só pode ser explicada pela visão centrada nos Estados Unidos e na Europa que muitos dos que trabalham nessas premiações têm; imagino que devam ter se achado muito progressistas por terem aclamado o filme. Ainda assim, associações como a GLAAD denunciaram Emilia Pérez como uma representação ruim de pessoas trans. O filme também não é uma boa representação da cultura mexicana.

Audiard deixa claro a todo o tempo que não está interessado em conhecer o México e seu povo, e sim apenas retratar o que ele imagina que é o México através de suas lentes de turista. Ele não está interessado de verdade em relatar ou denunciar a violência no México ou com as vítimas. Ele apenas quer usar o assunto para fins dramáticos e para tentar chocar em uma novela irresponsável e mal feita. Ele tenta nos fazer ter empatia por uma personagem trans, que ganha outro caráter e personalidade após a transição, para que a gente desvie o olhar de seu preconceito por todo o filme.
Audiard não tem interesse em se aprofundar nos verdadeiros horrores causados pelos assassinos, incluindo Manitas, não entende e não faz questão de entender o sofrimento que o narcotráfico causa em um local, o sofrimento das mães em busca. Ele quer apenas fazer um espetáculo da dor. Tudo isso em uma roupagem de filme artístico, disruptivo e inovador. Emilia Pérez é um filme confuso, raso e que se recusa em tratar Emilia como uma pessoa completa.
Emilia Pérez é uma visão eurocentrista de uma questão delicada do México, com uma imagem retrógrada que tenta se passar como progressista, totalmente fora de sintonia com a realidade. O roteiro nunca sai da superfície. É como se um ChatGPT tentasse fazer um filme. Os diálogos parecem ter sido traduzidos sem revisão no Google Tradutor. O filme ignora como a violência impacta, destrói e deixa rastros no presente e no futuro. É certamente um dos filmes mais decepcionantes e frustrantes que já assisti. É um filme ambicioso que falha miseravelmente em tudo o que se propõe a fazer.
