[Crítica – Mostra SP 2025] Mirrors No. 3 (2025)
Mirrors No. 3 se constrói entre extremos: o verão, o sol e o calor do exterior contrastam com o frio latente que habita os personagens. No filme, Paula Beer interpreta Laura, uma mulher distante, de personalidade volúvel, assombrada por demônios silenciosos antes mesmo da tragédia que move a narrativa. Ela é uma jovem pianista em Berlim que enfrenta um colapso mental sem explicação clara. Incapaz de expressar o que sente, ela se distancia de todos — inclusive de seu namorado, Jakob.
Depois de sair da cidade, Laura muda de ideia e decide voltar, provocando a fúria de Jakob, que dirige em alta velocidade para levá-la de volta à estação. O trajeto termina em desastre: o carro capota, Jakob morre, e Laura sobrevive, mais traumatizada do que nunca.

Pouco antes do acidente, Laura cruza o olhar com uma mulher solitária que vive à beira da estrada: Betty (Barbara Auer). Após o carro capotar, é ela quem a resgata dos destroços e a leva para sua modesta fazenda, onde a quietude parece oferecer um tipo estranho de consolo. Ilesa, Laura recusa atendimento médico e pede para permanecer ali. Betty concorda sem hesitar. O filme é permeado por vazios e incertezas que persistem mesmo depois da virada da história. Aos poucos, o longa revela as razões humanas e dolorosas por trás dessa convivência improvável.
Descobrimos que Betty vive com o marido, Richard (Mathias Brandt), e o filho adulto, Max (Enno Trebs), com quem mantém uma relação silenciosa. Juntos, eles administram uma oficina de conserto de carros nas redondezas, cenário que adiciona mais uma camada de melancolia a essa história de vínculos precários. Com o tempo, Laura e Max, ambos marcados por perdas e retraimento, criam um laço. Uma espécie de família improvisada surge, movida por gestos sutis e silêncios compartilhados.

A certa altura, Betty começa a chamar Laura por outro nome, e moradores locais que passam em frente à casa olham as duas com estranhamento. O que poderia soar como um grande mistério se revela, na verdade, como algo mais íntimo e curativo: um processo de reconstrução mútua, em que duas mulheres tentam preencher ausências e inventar uma vida possível. Betty projeta em Laura a figura da filha perdida; Laura se deixa moldar, como se sua própria identidade fosse um espaço vazio à espera de preenchimento.
Com o tempo, os motivos de Betty se tornam mais claros, enquanto Laura parece simplesmente disposta a desaparecer dentro de outra vida. Mas o foco do filme não está no segredo em si que uniu aquelas personagens, e sim na dor que o antecede — no modo como o luto se espalha, transformando a vida de quem fica. A “revelação” existe, mas funciona apenas como pano de fundo para um retrato sobre como as pessoas aprendem a seguir em frente de suas formas particulares. A força da obra está na empatia do diretor Christian Petzold e em sua recusa a clichês sobre sofrimento mental.

O filme evita explicar as causas exatas do sofrimento de Laura, mas sugere o peso de algo não resolvido. Já Betty carrega uma dor visível: ao ver Laura pela primeira vez, ela a chama por engano de “Yelena” — um deslize que revela o vazio deixado pela perda de alguém. A presença de Laura desestabiliza a casa, onde o marido Richard e o filho Max tentam retomar uma rotina possível. A cada gesto, Petzold mostra como pequenos reparos — consertar uma torneira, um piano, uma bicicleta — se tornam metáforas do restabelecimento emocional. Mesmo que as revelações não surpreendam, elas cumprem a função de romper a ilusão idílica que as duas mulheres tentam preservar.
O título do filme já anuncia seu centro simbólico: inspirado em uma das cinco peças da suíte Miroirs, de Maurice Ravel, composta no início do século XX, ele transforma os espelhos — reais ou imaginários — no eixo secreto da narrativa. Cada plano reflete o anterior como em uma sucessão de imagens que se repetem, se distorcem e se contaminam. Petzold faz das janelas, dos brilhos e das sombras um dispositivo de revelação e disfarce, lembrando que o ato de olhar nunca é neutro. Quando Laura se encara, o espelho lhe devolve apenas fragmentos — uma identidade composta por ausências, intervalos e tentativas de preenchimento.

Mirrors No. 3 é um drama de identidades refletidas e ausências compartilhadas, um filme com personagens texturizados, humanos e com camadas. Sutil e compacto, se desenrola como um devaneio entre o real e o imaginário. Sua narrativa evita soluções e explicações: o vazio é o centro do filme. Mirrors No.3 é um melodrama sofisticado, com leves pinceladas de fantasia, que usa a repetição e o mistério para explorar a culpa, o luto e o seguir em frente.
Mirrors No. 3 faz parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro. O filme foi exibido na Quinzena dos Cineastas do Festival de Cannes.

