Crítica

[Crítica – Mostra SP 2025] O Que Marielle Sabe (2025)

Até que ponto os pais devem controlar a vida dos filhos? E o que aconteceria se as crianças resolvessem inverter essa relação? O Que Marielle Sabe parte de uma ideia simples, quase um experimento de inversão de papéis: e se as crianças, de repente, ganhassem o poder de vigiar o comportamento dos adultos com o mesmo zelo com que pais obcecados por tecnologia monitoram os filhos? Esse é o ponto de partida do filme de Frédéric Hambalek.




A história começa com um plano em câmera lenta que mostra uma pré-adolescente levando um tapa no rosto. É Marielle (Laeni Geiseler), de 11 anos, que leva um violento golpe no rosto após chamar a melhor amiga de “vagabunda” na escola. E esse gesto aparentemente banal logo desencadeia consequências imprevisíveis. Horas depois, sua mãe, Julia (Julia Jentsch), entediada com a rotina de escritório, flerta abertamente com o colega de trabalho Max (Mehmet Atesçi). Entre cigarros e conversas de teor sexual explícito, fica claro que essa cumplicidade proibida é um hábito recorrente.

O Que Marielle Sabe (2025)

Enquanto isso, Tobias (Felix Kramer), marido de Julia, é mostrado em uma reunião na editora onde trabalha. Ele tenta defender o design da capa de um livro, mas o colega mais jovem o ridiculariza e o restante da equipe concorda. Tobias, contrariado, promete rever as opções apesar do prazo apertado.

À noite, de volta à casa, Marielle, que ouve pacientemente as versões “editadas” que os pais contam sobre o dia, faz uma revelação bombástica. O tapa recebido na escola, resultado de uma briga banal, parece ter despertado nela estranhos poderes telepáticos. Ela agora consegue ver e ouvir, à distância e em tempo real, tudo o que os pais fazem, inclusive as traições emocionais e os constrangimentos no trabalho.




Julia e Tobias, a princípio, reagem com descrença. Supõem que a filha esteja usando algum truque tecnológico. O pai suspeita de algum tipo de invasão tecnológica – talvez ela tenha hackeado os celulares -, mas, à medida que o tempo passa, fica evidente que as habilidades são reais. Quando percebem que ela realmente os vigia, o pânico se instala e a estrutura familiar desaba. Passam a controlar cada gesto e palavra, encenando uma vida idealizada para escapar da vigilância. Em uma das cenas mais divertidas do filme, decidem falar em francês para impedir que Marielle entenda a conversa.

O Que Marielle Sabe (2025)

A pergunta central que move o filme é: como um casal reagiria se soubesse que a filha pode testemunhar tudo o que fazem? Tentariam encenar a vida perfeita que acreditam ser esperada deles, ou se libertariam de vez das aparências? E quem somos quando ninguém está olhando? O que acontece quando alguém passa a olhar o tempo todo?

Hambalek trata essa alegoria psicológica com elemento fantástico com leveza e ironia, sem buscar explicações científicas forçadas. O diretor conduz a narrativa sem recorrer à explicação do fenômeno: não importa como Marielle ouve os pais, mas o que essa escuta revela. O tom é de sátira sombria, pontuada por um crescente senso de paranoia. Fingir ser pais perfeitos acaba corroendo a relação de Julia e Tobias, que oscilam entre confissões culposas, crises existenciais e recaídas em seus impulsos reprimidos.

O Que Marielle Sabe (2025)

Por trás da fachada de conforto e sucesso — a casa moderna, os cargos estáveis, o ar de harmonia —, Julia e Tobias vivem atolados em frustrações e segredos. A menina, ao observar e julgar tudo, torna-se o espelho da hipocrisia parental. Primeiro, Julia e Tobias tentam se comportar melhor ou, pelo menos, parecer que se comportam. Mas a performance logo implode.




O filme ironiza temas conhecidos: a hipocrisia cotidiana da classe média, a distância emocional entre pais e filhos, e as mentiras necessárias para sustentar o casamento. Ainda assim, Hambalek evita o escárnio fácil: há empatia pelos adultos imperfeitos e, sobretudo, por Marielle, cuja “dádiva” psíquica é um fardo. Em um dos momentos mais dolorosos, ela chora e diz: “Eu devia morrer. Assim vocês poderiam fazer o que quiserem de novo.”

O Que Marielle Sabe (2025)

O roteiro de Hambalek é ágil e versátil, alternando com naturalidade entre drama e comédia. O que ancora tudo é a própria Marielle: apesar de aparecer menos em cena, ela é o centro emocional da narrativa. Laeni Geiseler entrega uma atuação contida e autêntica, retratando uma adolescente confusa e sobrecarregada por um dom que nunca pediu.

O Que Marielle Sabe funciona como metáfora refinada da cultura da vigilância que normalizamos, e também como um curioso “coming of age” às avessas, em que são os adultos que precisam amadurecer. É uma sátira sobre a vida de fachada da classe média e combina humor ácido, realismo psicológico e um toque sobrenatural para desmontar a farsa de uma família burguesa em crise.

O Que Marielle Sabe faz parte da 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 16 e 30 de outubro. O filme recebeu uma menção especial do prêmio do sindicato dos cinemas de arte alemães do Festival de Berlim.