Crítica

[Crítica] The Leftovers: 2×08 – International Assassin

[Crítica] The Leftovers: 2x08 - International Assassin

[contém spoilers]

Depois de um cliffhanger inacreditável, o episódio começa com a linda música de Iris DeMent e essa abertura tão evocativa que criaram para a segunda temporada de The Leftovers. “Think I’ll just let the mistery be.” [Acho que vou apenas deixar o mistério acontecer], canta DeMent na abertura. É praticamente a chave de toda a temporada; é um convite.

Quero dizer em primeiro lugar que achei esse o episódio mais satisfatório para órfãos de Lost que já existiu – tanto na narrativa completamente metafórica (fazendo malabarismos com os grandes temas da humanidade, como crença, humanismo, existencialismo) como no ritmo pouco revelador e crescentemente confuso.


Kevin (Justin Theroux) bebe o veneno e de fato morre. Seu lugar de pós-existência é um hotel. Virgil também está lá – como concierge – e se comunica com Kevin, diz que ele precisa matar Patti. Aqui a coisa começa a ficar bem bizarra e envolvente. Patti, ao que parece, está concorrendo às eleições presidenciais. Não sabemos se ela lidera nas pesquisas ou o eleitorado a vê como aventureira. Sabemos, no entanto, que os Guilty Remnants se organizaram como grupo político e têm recebido doações significativas. A prórpria ideia já é genial – indicando que qualquer organização civil, por louca que seja, consegue adquirir significativo capital eleitoral.

Para os GR esse é um futuro extremamente plausível. A crítica fica em suspenso e é apenas sugerida – como é sempre o caso na boa arte. Todo o clima do episódio é de nebulosidade temática. Kevin procura ao máximo fazer o passo a passo para matar Patti e voltar à sua vida normal. Quando isso não acontece depois de ele enfiar uma bala na candidata à presidência que, até ali, ele acreditava ser Patti, Kevin fica desiludido. Só então passa a de fato pensar de uma forma não-lógica, não-linear, como lhe pediu Virgil no início do episódio.

Há um diálogo no corredor do hotel entre Kevin e Neil que é sensacional, e já se torna uma assinatura do seriado essa construção de diálogos, esse bate e volta cheio de revelações em que os personagens aparentemente não compartilham do estado emocional daquilo sobre o que falam – coisa que, nunca é demais lembrar, também vem de Lost: fica claro que se trata de uma característica da escrita de Damon Lindelof.

Depois da conversa com Neil, a coisa fica ainda mais arquetípica e aí temos quase uma ideia de ciclos do inferno de Dante. Acaba de me ocorrer que quem guia Kevin nessa pós-vida é Virgil; quem guia Dante nos ciclos é o seu poeta-ídolo Virgílio. Sugiro que não devemos acatar nada em The Leftovers como mera coincidência.

A cena em que Kevin precisa empurrar a pequena Patti dentro do poço é de partir o coração de qualquer um. Aqui exploram o humanismo de maneira crua, a ideia de que estamos todos ligados e de que o bem estar de uma pessoa é intimamente relevante para o nosso bem estar. Toda a sequência do poço, aliás, é admirável e, não tenho dúvidas, já entra para os grandes momentos da Televisão.

Preste atenção em como Patti é filmada lá do fundo do poço, no momento logo em seguida a escutarmos seu pedido de ajuda. Somos os olhos de Kevin e queremos também descer ali para ajudar Patti. Há algo de ligação entre a sua dificuldade de morrer, de deixar o mundo dos vivos e a sua tagarelice. Tudo foi delicadamente explorado nesse capítulo da série.

Ademais, esteticamente, o episódio evocou referências, na minha opnião, de O Ano Passado em Marienbad (1961). (O livro no qual o filme se baseia se chama A Invenção de Morel, do argentino Adolfo Bioy Casares, e é um dos livros bases também para a criação de Lost – só para constar.) Pelo clima impessoal do hotel, das pessoas, pela maneira como Kevin se veste e pela sensação que ele comunica.

Falemos um pouco da atuação. Um bom roteiro faz o ator. É interessante olhar um pouco a carreira de Justin Theroux e perceber que ele sempre foi escalado para papéis pequenos, pouco expressivos, e geralmente em comédias. Atores que seguem esse caminho rapidamente amargam o mesmo tipo de casting a que estão acostumados e são esquecidos do grande público. Ter um roteiro incrível em mãos extrai até de atores menos talentosos algo de especial – a oportunidade de virada, a chance de mostrar por que escolheu ser ator, afinal de contas. E Justin impressiona demais nesse “International Assassin”.

Sei que o texto está ficando deveras longo, mas não posso deixar de comentar a trilha do episódio, que foi tão fundamental na construção e proposta do episódio. Escutamos constantemente tanto o canto quanto a introdução de “Va, pensiero, sull’ali dorate”, canção do terceiro ato da ópera Nabucco, de Verdi. Não se pode ignorar um canto, um meio lamento, que anseia pelas memórias, que é assombrado pela vontade de voltar para a sua terra natal. Fala dos escravos hebreus que sonham com a chance de rever as margens do rio Jordão.

Acompanhe o primeiro verso que foi cantado no episódio numa tradução livre que fiz. Imagine os pensamentos, a própria construção daquele pós-vida, feito na cabeça de Kevin:

“Voe, pensamento, em asas de ouro;
Vá se aquietar nos declives e nas montanhas
onde, macio e suave, o doce ar
de nossa terra natal é tão perfumada”

Que a cidade se chame Jarden e que a presença da água nela seja tão importante e simbólica desmerece qualquer comentário adicional sobre a sugestão que se quer fazer. Assim como o rio Jordão era a casa dos escravos hebreus, Jarden parece ser o lugar sagrado de todos os escravos que sobraram na terra – estes, escravizados pelo quê exatamente? Há ainda muito que The Leftovers pode nos oferecer. A grande série da atualidade – sem mais.

Nota: 5/5

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